Entrevista | Kátia Maia Flores
“Há um apagão da história do Estado do Tocantins”
Historiadora denuncia que a história da região
vem sendo construída em bases falseadas com objetivo intencional de
ignorar alguns fatos e evidenciar outros para servir a interesses
políticos imediatistas
Gleydson Medeiros.
Kátia Maia Flores exibe livro que contribui para a compreensão da história do Tocantins
Ruy Bucar
Ela percorreu arquivos públicos do Brasil e de Portugal em busca de
vestígios históricos que remontem origens dos tocantinenses e encontrou
um vasto banco de dados indispensável para se compreender a nossa
formação enquanto região autônoma, dona de uma cultura e traços
geográficos próprios. A professora Kátia Maia Flores, doutora em
história pela Universidade Federal de Minas Gerais, em sua pesquisa, que
resultou na tese de doutoramento e na publicação do livro “Caminhos Que
Andam”, descobriu que toda a história do Tocantins está estritamente
ligada ao Rio Tocantins.
“Quando comecei a encontrar a documentação, tanto a que existe no Pará
quanto a que existe no Rio de Janeiro, e a documentação que veio dos
arquivos de Portugal, percebi que desde os primeiros momentos da
colonização há um interesse pelo interior do Brasil. E a primeira
referência que se constrói com relação a esse interior, a esse sertão, é
a configuração do Rio Tocantins.” A historiadora, observa que o Rio
Tocantins ocupa um espaço no imaginário da região muito maior do que
possamos supor. Ela afirma que somos uma civilização formada em torno do
rio e suas riquezas.
E que no começo da colonização os portugueses ignoravam completamente a
geografia da região e tinham os rios como obstáculos. “Logo aprenderam
com os indígenas, que melhor seria utilizar esses rios como caminhos e
não vê-los como obstáculos. Então começaram a utilizar os rios como
canais de comunicação porque os índios brasileiros utilizavam toda essa
malha fluvial para se deslocar por todo o território brasileiro, se
valendo desse aspecto geográfico para comunicação e para a economia.”
O grande rio no dizer dos índios, de lendas, histórias, encantamentos,
viajantes, é também o rio das grandes possibilidades que, ao longo dos
séculos de conquistas, descobertas e exploração, ainda guarda mistérios
cuja verdadeira importância para o desenvolvimento da região só através
de um mergulho no passado podemos compreender. Caminho corriqueiro para
quem transitava pelos sertões, o Rio Tocantins ocupa desde o Brasil
Colônia, importância estratégica na interiorização do Brasil.
A pesquisadora explica que, depois do ciclo do ouro, o rio cumpriu
papel fundamental no restabelecimento econômico da região. Conta a
autora que das embarcações rudimentares dos tempos remotos aos batelões
dos tempos modernos, a navegação, a despeito da enorme dificuldade na
época, introduziu uma nova civilização, transportando riquezas, levando
novidades e estabelecendo a comunicação, o comércio e contribuindo para a
povoação dessas terras tão distantes.
“Enquanto os governos de Goiás mantiveram as mais enfadonhas
reclamações políticas, e lançaram nuvens de fumaça sobre a navegação do
Rio Tocantins, ela se manteve, por obra de determinados comerciantes e
práticos da navegação, que, a despeito do poder público, a praticaram
por mais de século, criando os meios de materialização na base da
experiência e improvisação”, explica Kátia Maia Flores sobre a navegação
do Rio Tocantins que chegou a ser proibida pela Coroa Portuguesa como
forma de combater o contrabando do ouro, o que contribuiu para o atraso e
isolamento da região que um dia viria se tornar o Estado do Tocantins.
A pesquisadora fez uma viagem de 2.400 quilômetros ao longo do Rio
Tocantins, da nascente até a foz, seguindo as pegadas dos bandeirantes,
navegantes, cientistas e toda sorte de aventureiros que cruzaram estas
paragens em busca das origens do Tocantins — o que resultou num livro de
história do Brasil.
O Tocantins é uma invenção e tem raízes históricas. Como surgiu e prosperou essa ideia?
Desde o início da colonização que existe uma série de mitos em relação
ao que era desconhecido no Brasil. Por que, na verdade, quando os
portugueses chegam ao Brasil, e não só os portugueses, o Brasil era um
vasto território desconhecido, nada se sabia sobre esse lugar. A
geografia não tinha ainda elementos necessários nem a tecnologia para se
desvendar rapidamente o que eram essas terras. E esses mitos reproduzem
algum imaginário que já havia na época associados aos próprios
interesses que existiam em relação à terra. Ou seja, havia no imaginário
que aqui se encontraria as riquezas que foram encontradas na América.
Então a geografia que vai se construindo sobre o Brasil incorpora todos
os mitos e ideias que são um misto de imaginário e praticidade. O
português que chega ao Brasil, passados os 30 anos iniciais, começa um
processo de desbravamento dessas terras e uma vez não encontradas as
riquezas no litoral, então estariam cada vez mais no interior. Essa
riqueza começa a impregnar o imaginário e motivar toda uma aventura de
interiorização em busca do possível ouro e as minas do Tocantins começam
a fazer parte desse imaginário. Os primeiros mapas do Brasil mostram
uma grande lagoa no centro do Brasil e delas saem diversos rios, essa é a
lagoa Eupana, uma lagoa repleta de ouro, diamantes. Com o avançar do
conhecimento essa lagoa vai desaparecendo dos mapas e no lugar a fraca
geografia que se constrói do território. O Rio Tocantins já começa no
século 17 a estar configurado nessa geografia. A região do Tocantins
passa configurar como a região a ser descoberta e a a qual se deveria
adentrar para buscar o sonhado ouro. Talvez aí a gente tenha o início
dessa invenção de uma região rica em minério e que precisava ser então
incorporada de alguma forma ao território.
As minas do Norte eram mais ricas que as minas do Sul. Como explicar o atraso secular a que esta região foi submetida?
Se nós compararmos a mineração em Goiás, a mineração em Mato Grosso, a
mineração em Minas Gerais e até mesmo em São Paulo temos diferentes
conjunturas dessa atividade. A mineração do norte de Goiás talvez tenha
sido a que mais se enquadre até mesmo nesses conceitos que temos de
mineração, aquela mineração que o explorador chega, desbrava tudo,
retira toda a riqueza e vai embora. A própria questão da mineração em
Goiás é diferenciada. No sul começa com um processo de povoamento em
Pirenópolis, em Goiás Velho. Essa região passa a ter um interesse de
entreposto entre São Paulo, Bahia e Minas Gerais. No norte é a mineração
pura, sem preocupação com povoamento, sem preocupação em construir
bases sólidas e desde o início há um tratamento desigual nessas regiões.
Enquanto uma está associada à ideia de entreposto e de base de certa
estrutura administrativa, até mesmo para controlar o processo de
mineração, no norte de Goiás o que vigora é a pura mineração. Quando o
ouro começa a dar sinais de esgotamento vem a pressão do governo
português para que essas minas continuem a produzir, até porque não há
gasto na extração desse ouro e a coroa portuguesa vem aqui pega o quinto
e leva embora. Então a cobrança para que a administração de Goiás
continue incentivando para que haja rentabilidade nessas duas minas vai
separando cada vez mais essas duas regiões. Uma, que tem que manter a
produção, e outra, que não se adapta e não acha certo que o padrão de
exigência continue a vigorar em relação às minas do norte. E aí começa
certo estranhamento entre as duas regiões.
Foram os mineiros os primeiros a manifestar o sentimento de
uma divisão. Estaria ligado a esses aspectos o nascimento da luta
separatista?
Talvez não a luta separatista, mas esse estranhamento existe em
decorrência da cobrança desigual do quinto do ouro. Goiás pagava uma
taxa e o norte de Goiás pagava mais e isso revoltava os mineiros que
tiravam ouro numa região muito mais inóspita, sujeito a conflitos com os
indígenas, enfim, a toda uma série de dificuldades e pagavam mais
tributo. Então há um descontentamento. Agora, que aí é a origem do
ideal, do sentimento de separação, não acredito que seja exatamente
nesse ponto.
A historiadora goiana Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante
em sua obra “Discurso Autonomista do Tocantins”, assegura que a formação
do Tocantins se deu pela combinação de fatores geográfico, cultural e
histórico. Isso quer dizer que o fator político, que achamos
determinante, não teve peso na formação do Estado?
Eu acrescentaria nos três elementos apresentados pela professora Maria
do Espírito Santo o fator político. O político não pode ser esquecido.
São aspectos que estão imbricados, o geográfico porque desde a mineração
que já havia as minas do norte e as minas do sul, geograficamente já se
separa Goiás desde o início em duas partes, Sul e Norte. As políticas
do governo da capitania e depois da província continuam partilhando a
região em duas partes, então geograficamente, politicamente há essa
separação. Nós temos a influência geográfica do norte do país, que
configura a nossa região de forma totalmente diferente, uma vegetação
diferente, um clima diferente, uma cultura diferente pelo próprio
processo de povoamento. Belém, do Pará, já tinha uma relação estreita
com o norte de Goiás mais do que com o sul. Havia um processo de
migração em decorrência dessa ligação. Mas não podemos pensar em momento
algum que a questão política não tenha sido importante para a separação
da região e a criação do Estado do Tocantins. O que não podemos
imaginar é que só a ideia política sem todos esses fatores seria capaz
de criar o Estado do Tocantins. E existem outros equívocos em relação a
essa questão política. A história do Tocantins tem sido de certa forma
construída em bases falseadas, em bases que até tornam pessoas heróis de
um processo que não é bem assim. Teríamos que pensar que o Tocantins
tinha todas as condições para que um processo político, para que uma
luta política viabilizasse a criação do Estado.
O movimento de 56 idealizado pelo juiz Feliciano Braga em
Porto Nacional foi um dos mais organizados, fez até bandeira para o novo
Estado. Por que se conhece tão pouco deste movimento recente?
Que há um apagão é evidente, um apagão que decorre exatamente do pouco
conhecimento que temos sobre a nossa própria história. Existem questões
nesse processo histórico de emancipação que não foram estudados, como a
ação de Teotônio Segurado, desembargador português no momento em que as
colônias do norte buscavam um processo de emancipação do resto do
território. A luta do Teotônio Segurado se encaixa nesse momento, nesse
contexto em que as colônias do norte buscavam uma emancipação que
ligasse diretamente a Portugal e essa é uma questão que ainda não foi
estudada nesse contexto de um movimento maior que havia no país. O
movimento de 56 é outro momento sobre o qual não há qualquer estudo.
Existe uma documentação razoável sobre o período, as atas da Câmara
Municipal de Porto Nacional, num período que essa discussão vinha para a
Câmara, era debatida, tomavam-se decisões e nada disso foi estudado
ainda. Então o fato de não se ter estudos sobre toda essa documentação,
sobre toda essa memória que existe, faz com que outras histórias surjam
exatamente para lançar uma nuvem de fumaça sobre esse momento que ainda
não foi estudado. Acho que há uma intencionalidade em se fazer isso.
A sra. coloca que a navegação do Rio Tocantins é um capítulo
rico da nossa história ainda pouco estudado. Fale mais sobre este
período.
Resgatar a história da formação do Estado do Tocantins tem uma
importância até maior do que fazer justiça a pessoas e movimentos que
existiam em prol da criação do Estado. Acho que a construção da
identidade do povo tocantinense passa necessariamente pelo conhecimento
da sua própria história, que é rica a despeito do que existe no
imaginário do Brasil de ser essa uma região de sertanejos, de indígenas.
Aqui é muito mais do que isso. Tem aspectos da nossa história que
precisam ser resgatados até para que essa identidade se construa de
outra forma, de forma mais autônoma, para que as pessoas tenham mais
autonomia e maior importância em relação ao que foi o passado da região.
Estudando o Rio Tocantins eu percebi que a nossa história está de uma
forma ou de outra ligada ao rio. Nossa cultura está de uma forma ou de
outra ligada ao rio, até nossas esperanças estavam ligadas ao Rio
Tocantins. Esse foi o primeiro aspecto que me fez apaixonar pelo
trabalho que desenvolvi. Logo no início eu imaginava que o que movia o
meu trabalho era uma paixão de jovem que passou os melhores momentos da
juventude nas margens do Rio Tocantins usufruindo de toda aquela beleza
que hoje as gerações atuais sequer imaginam como era. No decorrer da
pesquisa eu descobri algo muito mais significativo para minha própria
identidade e para a identidade do povo do meu Estado ligado ao rio.
Quando eu comecei a encontrar a documentação, tanto a que existe no Pará
quanto a que existe no Rio de Janeiro e a documentação que veio dos
arquivos de Portugal, percebi que desde os primeiros momentos da
colonização há um interesse com o interior do Brasil. E a primeira
referência que se constrói com relação a esse interior, a esse sertão, é
a configuração do Rio Tocantins. Então tanto do sentido norte-sul como
do sentido sul-norte há um interesse explícito em relação a conhecer,
explorar, incorporar essa região ao processo de colonização do país.
Então temos o desvendar de uma história cujo aspecto geográfico é o Rio
Tocantins, o alicerce sobre o qual vai se construir a história. Seja no
aspecto do povoamento, seja na comunicação, nos aspectos econômicos, nos
aspectos políticos o rio vai construindo e servindo de alicerce para a
construção dessa história.
É curioso que o rio agora está sendo redescoberto com esses
mesmos fatores determinantes para um avanço, para modernidade do
Tocantins?
O historiador Sergio Buarque de Holanda diz que no começo das
colonizações os rios eram mais empecilhos do que facilitadores no
processo de penetração no território brasileiro. Então os bandeirantes,
os portugueses, desconheciam tão completamente a nossa geografia que
costumeiramente seguiam numa situação de ter que cruzar o rio. Logo eles
aprenderam com os indígenas que antes utilizar esses rios como caminhos
do que tê-los como obstáculos. Então eles começaram a utilizar os rios
como canais de comunicação porque os índios brasileiros utilizavam toda
essa malha fluvial para se deslocar por todo o território brasileiro, se
valendo então desse aspecto geográfico para comunicação, para a
economia. Então quando você tem essa luta secular pela navegação no Rio
Tocantins, todo movimento político para que essa navegação se tornasse
efetiva, você tem aí o bom senso de ter a geografia a favor do processo
de desenvolvimento. Quando o transporte rodoviário prevalece como
alternativa no nosso país, como o modal de transporte a ser utilizado,
esquece-se por completo esse fator geográfico como facilitador para um
processo de comunicação que poderia ser mais viável.
Em seu livro “Caminhos que Andam” a sra. aponta que no século
19 Couto Magalhães já pensava na integração hidrovia-ferrovia. A vocação
do Tocantins para o transporte multimodal tem raízes históricas?
Eu encontrei um documento muito curioso na minha pesquisa. É um
documento que dá conta de uma viagem que alguns padres franciscanos
faziam do Mato Grosso, chegavam à região amazônica e adentravam o
interior do Brasil pelo Rio Tocantins. Isso mostrou para os
administradores que havia uma possibilidade de comunicação direta, de
interação direta de duas regiões importantes de mineração, que eram a
região do norte de Goiás com a região do Mato Grosso, isso via norte,
ali pelo Rio Amazonas. Assim como os portugueses de São Paulo
descobriram logo muito cedo que era possível sair de São Paulo e, rio a
rio, chegar às minas tanto de Goiás quanto de Mato Grosso. É evidente
que com a descoberta do ouro houve certo fechamento em relação a essas
possibilidades, numa política da coroa de coibir o contrabando de ouro.
Esses caminhos acabaram sendo por algum tempo esquecidos ou então
praticados muito precariamente.
A navegação fluvial no Tocantins não é apenas uma demanda
atual, é antes de tudo um processo histórico. Para saber do potencial do
Tocantins para o transporte multimodal é só consultar a história?
Era só consultar a história, até porque na segunda metade do século 19
o governo brasileiro investiu em muitas expedições formadas não só por
engenheiros brasileiros, mas estrangeiros também, no sentido de estudar a
capacidade de navegação dos nossos rios. Lendo os documentos dá a
perceber que havia um interesse político em verificar a efetividade das
possibilidades de interligação não só na região do Tocantins, mas no
Brasil como um todo através de redes de vias férreas e transporte
fluvial. No caso específico do Tocantins nós tivemos vários estudos de
viabilidade da navegação que apontaram para essa possibilidade até mais
do que partindo do Rio Araguaia, que na opinião dos técnicos não era tão
viável quanto era a navegação do Tocantins.
O livro é importante na historiografia do Tocantins, uma bela
viagem pela história do Estado, pela cultura, costumes, geografia e que
remonta as nossas origens. Como foi fazer esta viagem de 2.400
quilômetros e de mais de dois séculos de volta ao passado?
Eu reafirmo que fui movida por muita paixão e ao me deparar com uma
farta documentação que existe sobre esse tema me tornei mais apaixonada
ainda. Eu tive a felicidade de pesquisar em importantes arquivos a
Biblioteca Nacional, a do Itamaraty no Rio de Janeiro, o Arquivo
Histórico Nacional. Pesquisei a documentação do Pará, não tão
profundamente quanto a do Rio de Janeiro, por falta de tempo, foram
quase seis anos de pesquisa. Pesquisei na Mapoteca do Exército que tem
uma coleção preciosa de mapas do período que foi trabalhado no meu
livro. Então o que eu constatei é que tão grande quanto a extensão do
Rio Tocantins, esses 2.400 quilômetros, é a importância que esse rio tem
não só para a vida do Tocantins, para a história do Tocantins, mas para
a própria história do Brasil. Isso foi cuidadosamente registrado numa
série de documentos governamentais e não governamentais que tratam de
questões relativas ao Rio Tocantins.
A sra. fez apanhado da bibliografia sobre a região e se
deparou com grande acervo. Onde estão estas obras e como são
classificadas?
Eu espero que a preocupação com a história do Tocantins seja mais
séria do foi até então nesses 21 anos de criação do Estado. Infelizmente
o pesquisador para ter acesso à nossa própria história tem que se
deslocar para o Rio de Janeiro, para Goiás, para Belém do Pará e para
arquivos internacionais. Então hoje o grande limitador para que mais
pesquisas sejam realizadas na nossa região é exatamente essa. Há uma
preocupação em resgatar e trazer cópias de toda essa documentação, seja
na forma microfilmada, seja ela digitalizada. Isso precisa ser feito. A
documentação sobre a nossa história, sobre o primeiro período da nossa
história, nós não temos no Tocantins e eu tive que sair para pesquisar. É
um volume muito grande. Goiás tem uma documentação farta sobre a nossa
região, a Biblioteca Nacional e todos esses arquivos que citei, agora
precisamos urgentemente de uma política pública séria, que faça um pouco
que Goiás fez e tem feito sistematicamente, uma compilação de toda
documentação, que se encontra em outros arquivos. Isso facilita para o
pesquisador ter acesso a essas fontes de pesquisa sem as quais não é
possível reconstruir a história da nossa região.
Em sua pesquisa a sra. seguiu os passos dos viajantes do século 19. Esse é um período importante de descoberta dessa região?
O Brasil, no século 19, que foi um século quase que mágico para o país
em relação ao conhecimento, abre seus portos para entrada de
estrangeiros. Vieram para cá várias missões científicas no intuito de
conhecer esse território que era totalmente desconhecido pela própria
política que Portugal tinha em relação as suas colônias. Várias
expedições chegaram a nossa região. No meu mestrado eu estudei essas
fontes, os relatos deixados por esses viajantes. Temos importantes
relatos que tratam da nossa história nesse período, do nosso cotidiano,
como a nossa população vivia, qual eram os principais desafios, qual era
o transporte, os canais de comunicação, as doenças e até possibilidade
de integração dessa região a outras do país eram citadas por esses
estudiosos. Essas fontes são mais acessíveis porque grande parte delas
foi traduzida e publicada, apesar de serem fontes já esgotadas para o
público comum. Mas ainda é possível você ter acesso e descobrir a
riqueza do século 19 para a nossa região. Há um tempo houve uma
exposição do Brasil e Áustria e na ocasião foi feito uma mostra do
Tocantins. Mostrou-se essa possibilidade de comunicação. Na época eu até
revi um pouco da nossa documentação porque essa ligação até é bem
anterior ao que se imaginava. Paul (Johann Emanuel), que foi um
importante cientista do século 19, esteve aqui no Tocantins (1817-1820) e
palmilhou a nossa terra de sul a norte, navegou pelo Rio Tocantins e
inclusive contraiu aqui a doença que o levou a morte algum tempo depois.
Se diz muito que o Tocantins tem uma identidade cultural em formação, suas origens estão ligadas ao Goiás ou separadas de Goiás?
Na verdade eu não trabalho com a ideia que existe a identidade
cultural ou uma identidade cultural. Acredito que identidades culturais
estão em processo de formação até porque a nossa região está em processo
de formação, nós temos um fluxo migratório muito forte e esse fluxo
ainda permite importantes trocas culturais que vão resultar com certeza
em identidades para a nossa região. Eu penso que essas identidades estão
ainda se sedimentando até porque as pessoas desconhecem muito da nossa
história, dos mitos, até da própria cultura que existem nas diferentes
regiões que compõe o Estado do Tocantins, que não é único, nós não temos
uma cultura única, uma homogeneidade regional. O Tocantins é uma
diversidade e essa diversidade ainda está em processo de conformação.
A novela “Araguaia”, com ambientação em Goiás e Tocantins, de
alguma forma desperta o interesse pelo turismo, cultura e história da
região central do Brasil?
Eu acho que o interesse passa por algo que desperte certa paixão,
então a novela tem essa capacidade, os argumentos, o enredo, as
filmagens, a escolha de cenários vai mostrar ao próprio povo do
Tocantins e ao Brasil como um todo, uma região que foi ainda muito pouca
explorada nesse sentido. Isso vai despertar um sentimento de
curiosidade e de paixão por um cenário tão bonito como é o nosso. E com
certeza vamos ver o despertar de interesse pelo turismo da nossa região.
Associado ao interesse turístico eu acho que surge também o interesse
sobre a nossa própria história, sobre quem somos. Nós não somos índios,
não existe só uma população indígena na região assim como não existe só
pessoas estranhas de outras regiões que vieram para cá. Nós temos um
povo tocantinense que ocupa essa região há tanto tempo quanto as demais
regiões do país. Nós temos uma história rica tal qual outras regiões do
Brasil. Há uma sensação às vezes, quando a gente conversa com as pessoas
que não conhecem a nossa história, que o Tocantins surgiu quase
magicamente. Desconhecem que aqui tem uma população, tem uma história,
tem suas tradições, tem seu desejos e seus sonhos. Eu acho que a novela
pode despertar para isso.
É difícil conceituar o Tocantins? O que é a gente tocantinense, o que é tocantinidade?
Eu acho que a nossa história, do povo tocantinense, é uma história de
muita paixão e muita resistência, porque a nossa história está ligada a
um processo de luta de emancipação. Isso despertou nas pessoas um
sentimento muito forte em relação a criar esse Estado, a dar a
emancipação que o povo tanto lutou e tanto queria. Falta essa nossa
história ganhar a verdadeira dimensão da história de um povo que
secularmente ocupa essa região que tem a sua cultura, a sua história, as
suas tradições e isso precisa ser valorizado. Até mesmo para que isso
não se perca nesse processo de encontro com outras culturas, com outras
pessoas que estão vindo para o Tocantins.
É possível imaginar como seria essa região se o Estado não tivesse sido criado?
O Tocantins hoje é muito diferente do Tocantins da minha infância, que
era de uma vida muito simples, muito ligada à natureza, às tradições
locais. Mas também é a história de um povo muito sofrido. Alguns
historiadores questionam todo esse discurso de abandono que existe em
relação a região norte de Goiás, mas ele realmente existiu. Quando você
observa, se houver um estudo detalhado de investimentos concretos,
feitos no Estado de Goiás nós vamos ver que há uma diferença muito
grande na comparação entre sul e norte. Quando o Tocantins foi criado, a
despeito de todo esse sentimento de infância, de tradição, de
preservação de valores, havia também uma fragilidade muito grande de
nossa população, que não tinha a escolaridade necessária, não tinha
acesso a universidade, não tinha acesso a saúde de qualidade, não tinha
acesso até mesmo a sua própria identidade diferente da de Goiás, não
havia respeito a essa identidade. Então a criação do Estado do Tocantins
tem sido importante por tudo isso, porque tem oportunizado a essa
população acesso ao que ela não tinha anteriormente, incluindo um
aspecto simbólico importante, o direito a ter a sua própria identidade.
O Tocantins justificou a sua criação e devolveu a essa região o que foi negado durante séculos?
Eu lembro que ao ser criado o Tocantins, um dos primeiros relatórios
que eu vi sobre a criação do Estado dava conta de que menos de 1% da
população tinha curso superior. Na verdade, quando o Tocantins foi
criado, nós não tínhamos sequer como incluir essa população nos empregos
que foram gerados, nos processos decisórios, nos processos políticos. A
nossa população estava despreparada na época por conta dessa situação
de abandono, se é que nós podemos chamar isso, em relação a assumir os
seus próprios destinos. Nestes 22 anos nós podemos dizer que muito dessa
situação já se reverteu, o tocantinense hoje está preparado para
assumir em grande parte os destinos do seu próprio Estado. Pessoas que
aqui nasceram, que vieram para cá, adquiriram formação contextualizada
no próprio Estado e isso é muito importante para que elas assumam os
destinos do nosso território.
Qual sua mensagem neste momento de ressaca eleitoral com a comemoração dos 22 anos do Tocantins?
Estamos completando 22 anos e em 1º de janeiro teremos pessoas
assumindo os destinos políticos do Estado. Espero que as pessoas sejam
mais conscientes das verdadeiras necessidades do povo do Tocantins, das
verdadeiras aspirações e que esse destino futuro seja muito mais de
autonomia do próprio cidadão, de liberdade, de valorização desse povo
que já lutou tanto e agora merece participar ativamente dos rumos e do
próprio desenvolvimento que se planeja para esse Estado.
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